segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A felicidade humana e a escola cara

 "Eu me sentiria responsável se eu colocasse no mundo uma criança pra sofrer, pra ser infeliz". Essa frase passa por inofensiva, não é? Mas era exatamente isso que pensava Nabor Coutinho de Oliveira Junior quando, em 2016, jogou a esposa e os dois filhos do 18º andar de um prédio, se jogando logo em seguida. Ele passava por graves problemas financeiros. Esse caso clamoroso mostra claramente as consequências de uma ideia errada a respeito do "sofrimento" e da "felicidade". 

 A ideia por trás do caso de Nabor é a de que uma pessoa é (ou pode ser) feliz quando ela é normal, saudável, e recebe as ferramentas para (do ponto de vista mundano) desenvolver plenamente seu potencial, recebendo boa educação, comendo boa comida e todas essas outras coisas que, no duro no duro, nunca, em nenhuma época, foram acessíveis para todos (não que seja ruim que todos possuam, pelo contrário). Partindo desse pressuposto, uma pessoa pobre jamais deveria ter filhos, pois vai ser incapaz de fornecer uma ~boa condição de vida~ pra eles. Partindo desse pressuposto, uma pessoa que tem risco de ter filhos deficientes jamais poderia ter filhos, pois essa criança, nascendo, viveria uma vida desgraçada, passando dor, entrevada, enquanto as outras crianças correm alegres por aí (ora, e esse "risco" não está presente em cada concepção?). E a noção do que é o "necessário" pode ir subindo arbitrariamente, de modo que há pessoas que não tem filho algum porque dizem que o mundo de hoje é "muiito difícil" ou preferem ter apenas um filho pra poder pagar pra ele a escola mais cara da cidade. A vida dos próximos filhos, que seria a consequência normal e sublime de um ato conjugal "desprotegido" (pra usar aqui a repugnante linguagem mundana, que dá a impressão que "engravidar" é como pegar uma doença), vale menos que a escola cara do filho, que poderia muito bem estudar em uma escola mais barata (ou pública mesmo, na minha opinião é quase tudo a mesma porcaria...) e ter a educação complementada pelos pais. 

 A maioria dessas pessoas, quando acabam concebendo um filho "indesejado" (e cujo "indesejamento" é sempre justificado por motivos supostamente nobres e altruístas), no começo ficam desesperadas, mas depois tomam consciência de que "filho é benção" e reorganizam na suas mentes a escala de valores, criando uma auto-justificativa para "tudo bem ter mais um filho" (mas ter mais um filho depois desse recem-concebido é algo impensável: é aí que grande parte das pessoas parte pra laqueadura ou vasectomia, métodos de mutilação). Algumas, nas quais essa ideia de "uma vida sem bicicleta chique e escola cara não é uma vida que valha a pena ser vivida", resolvem matar a criança no próprio ventre, justificando esse ato medonho com palavras pseudo-virtuosas e pseudo-autruístas.  E isso não vale apenas pra crianças ainda não-nascidas! São comuns os casos de pais que suicidam quando percebem que irão perder todos os bens, deixando os filhos, acostumados a viver a pão-de-ló, numa situação financeira ruim (eles não conseguem suportar a ideia de deixar o filho "numa situação ruim" e dão fim à própria vida, quase certamente jogando a própria alma no inferno, por triste que seja dizer isso). É menos comum (graças a Deus!) casos como os de Nabor, que julgou que, privados dos bens, seus filhos e sua esposa seriam mortalmente infelizes, e tomando o lugar de Deus, Senhor da vida e da morte, os matou para priva-los do "sofrimento". 

 A ideia de fundo por trás de tudo isso é a de que existem vidas que valem "menos a pena" do que outras. É, no fundo, uma ideia eugenista. Um ser humano (a revelia da esmagadora maioria que é pobre e não tem condições) que não estuda em escola cara é "menos digno de viver" que um ser humano que estuda numa escola cara. Um molequinho com distrofia muscular tem uma vida desgraçada, seria melhor nunca ter nascido, segundo esse mau pensamento! É, no fundo, você decidindo o valor de uma vida com base em uma escala de valores tão arbitrária quanto o lobo-guará na nova cédula de 200 pau. Toda a vida vale a pena, e a felicidade não consiste em "ter coisas". O nível de "felicidade" (acho que isso foi medido numa certa pesquisa aí com base em uma auto-percepção subjetiva de seu próprio estado de espírito) dos ricos e dos pobres é semelhante, o nível de felicidade dos saudáveis e dos doentes condenados também é semelhante (contraposição entre "homo sapiens" e "homo patiens" de Viktor Frankl). Nada nesse mundo pode preencher o coração do homem, e não é ter coisas que o tornará feliz. Mas, definitivamente, é infeliz aquele que se julga capaz de dizer que vida vale a pena ser vivida e que vida não vale. 

 Note: com isso não viso aqui minimizar o sofrimento alheio. É triste uma situação de pobreza extrema, é tristíssima a situação de uma criança que cresce na base da pancada e até de abusos sexuais. É triste a situação de uma criança de orfanato, que cresce sem pai e sem mãe. Existe esse tipo de desgraça no mundo, e devemos fazer o possível para que o sofrimento dessas pessoas seja mitigado: consolar os aflitos, vestir os nus, alimentar os que tem fome, corrigir os que erram: tudo isso é obra de misericórdia. Mas não diga que essas pessoas estariam melhores se estivesse mortas ou se nunca tivessem existido. É isso que você diz, implicitamente, quando você diz a frase que encabeça esse texto.


Foto de Group Of Happy African Boys From Samburu Tribe Kenya ...

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