segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Física de Crente - Pierre Duhem

  Terminei de ler o livro "Física de Crente", de Pierre Duhem. Na verdade, tal "livro" é um apêndice de meras 60 páginas de um livro de Duhem, chamado "A teoria física: seu objeto e sua estrutura", numa tradução livre. Este apêndice foi escrito como resposta a determinadas acusações feitas a ele, que sugeriam que a visão de ciência que ele possuía derivavam de sua fé religiosa. 

 Primeiramente, falemos um pouco sobre o autor. Pierre Duhem foi um dos grandes expoentes da física do século XIX, sendo ele responsável por progressos na termodinâmica. Na universidade, ouvi o seu nome na chamada "relação de Gibbs-Duhem". Foi também historiador da ciência, tendo sido ele o principal responsável pelo esclarecimento de que a ciência moderna (pós-Galileu) só pôde surgir em virtude dos progressos já feitos pela escolástica. Era também um católico fervoroso.

 Em primeiro lugar, ele elabora uma visão "positiva" da ciência física, de modo a possibilitar que, independentemente da visão metafísica, se possa "fazer física", por assim dizer. Ele faz tal coisa do modo mais pragmático possível, definindo que a física como prática acadêmica consiste em ligar experimentos à signos matemáticos, definindo então relações entre estes signos. Se trata simplesmente de tentar inventar leis matemáticas que expliquem o experimento, nada mais. Sendo assim, qualquer um pode, independentemente de sua visão filosófica, fazer física. Ora, isso é um pouco insatisfatório, mas melhora depois, vejamos bem. Ele também demonstra que, dada esse definição da ciência física, que por definição busca leis matemáticas para descrever fenômenos que a priori sabemos ser determinísticos, é totalmente inconcebível que se use tal teoria para refutar ou confirmar qualquer fato que se encontre para além de seu escopo. O livre-arbítrio é, por definição, não determinístico: como poderia, então, a física "des-prova-lo", se este já foi excluído de seu escopo aprioristicamente?  A física fala, então, apenas dos fenômenos que ela busca descrever no ato mesmo de sua elaboração, não da realidade tal como ela é.

Deste modo, parece que a física (teórica) não tem nenhum valor para além do mero utilitarismo, pois se trata apenas de um conjunto de leis para prever coisas. Entretanto, ele levanta um ponto de que todo filósofo deveria estudar física, e que a própria atividade de um físico que se levante para além da mera criação de leis "utilitárias" tem motivação filosófica. Isso se dá porque a física, em seu itinerário ao longo dos séculos, realmente "evoluiu" em uma direção na qual fenômenos supostamente descorrelacionados entre si se provaram consequência de uma mesma teoria mais geral (ele também levanta o ponto de que, para entender para onde a física tende, é necessário estudar toda sua história, não só o seu momento atual, o que me parece muito razoável). Deste modo, a tendência geral da física é na direção de uma maior unificação que, de certo modo, faz antever como de fato as coisas 'são' em seu íntimo, como de fato são as leis de fato que o mundo material obedece. Mas porque deve existir uma lógica apreensível subjacente a tudo? Ora, pode-se dizer que é porque o próprio progresso da física parece caminhar nesta direção, mas isso não é garantia de que isso continuará acontecendo (o livro foi escrito no começo do século XX, numa era pré-quântica e pré-relatividade geral). No duro no duro, a "crença" de que a física tende a uma unificação que de fato explica a realidade material é, para o autor, uma crença metafísica numa ordem subjacente a todas as coisas (que é plenamente concordante com a Revelação cristã, como bem sabemos). Deste modo fica claro porque ele diz que um filósofo deve saber física (Xavier Zubiri aparentemente seguiu tal conselho com prontidão): primeiro, para não tomar por "real" aquilo que é mera construção matemática utilitária (e vice-versa: nas teorias físicas, não é fácil discernir uma coisa da outra, pois em geral estão muito misturadas. No experimento, daí não tem jeito, a coisa é o que é), e segundo, porque de fato a física, em sua história e no seu itinerário, parece tender para uma descrição (envolta nas sombras do "eu sei como é, mas não sei o que é e porque é") acurada da sinfonia tocada pelas forças naturais no desenrolar temporal deste mundo não-humano que se apresenta diante de nós.

Por fim, ele demonstra que a física teórica (e este argumento continua válido neste nosso mundo pós-mecânica quântica & cia) é perfeitamente conciliável como a física aristotélica, que é uma "metafísica natural", por assim dizer. Ela não trata dos "como" do mundo natural, mas dos "porquês". Óbvio que a tentativa dela responder os "como" é bem fracassada, porque o estagirita ainda não dispunha dos métodos acurados de medição e observação do mundo natural. Como diz Olavo de Carvalho, num de seus muitos acertos (não sou "olavete", antes que me perguntem: mas neste ponto ele acerta), a primeira pessoa que faz algo nunca faz este algo muito bem. Aristóteles foi o "inventor" das ciências naturais, então é óbvio que ele não poderia fazer tudo certinho. Mas as bases profundas nas quais se deve ancorar uma verdadeira compreensão "realista" (ou seja, dentro do contexto da realidade dos objetos e das relações ali encontradas, de seus "porquês") da ciência física já estão dadas lá, e não só não-contradizem, mas lançam uma luz profunda na própria ciência física tomada do modo "positivista" definido anteriormente. Ele termina mostrando que uma verdadeira "metafísica da física" (como poderíamos chamar aquilo que Carlos Nougué chama de "Física geral Aristótelica") precisa se ancorar, dentre outras coisas, numa teleologia: só se pode entender algo se se entende as quatro causas deste algo: não basta a causa "eficiente" misturada à algo entre causa formal e material, é necessário discernir "o que é o que" e apelar para a causa final das coisas, o "termo" ao qual as coisas tendem (ele dá o exemplo da termodinâmica, que ele acreditava ser a ciência que unificaria todas as outras: tal ideia não envelheceu muito bem não, embora existam teorias que busquem explicar a relatividade geral como fenômeno emergente da termodinâmica. Na termodinâmica, o sistema fechado tende para uma configuração que maximiza a entropia, por exemplo, o que constitui, salvo engano, efetivamente uma 'causa final' de um processo físico).


Enfim, é um livro que envelheceu bem e que lança algumas luzes sobre a física e o seu papel frente a uma visão de mundo integral. Não sei se concordo com tudo, se tudo está correto, mas dada a sua fé e seu conhecimento, certamente não é um autor a se desprezar, e os pontos levantados por ele parecem ser muito pertinentes.

Pierre Duhem (1861-1916)



Pierre Duhem escrevia bem

" Escravo do método positivo, o físico é semelhante ao prisioneiro
da caverna; os meios de conhecer de que dispõe não lhe permitem
ver nada, excepto uma sequência de sombras que se perfilam na
parede oposta ao seu olhar; mas adivinha que esta teoria de silhu-
etas, cujos contornos se esfumam diante dos seus olhos, é apenas
o simulacro de uma série de figuras sólidas; e, para lá do muro que
não pode transpor, afirma a existência destas figuras invisíveis" - Pierre Duhem



sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cavalo de Tróia na Cidade de Deus - Dietrich Von Hildebrand - As funções do filósofo

  Ontem terminei a leitura do livro "Cavalo de Tróia na Cidade de Deus", de Dietrich Von Hildebrand, um dos maiores intelectuais católicos do século XX, chamado de "doutor da Igreja do século XX" pelo papa Pio XII. Neste livro, ele busca desnudar, colocar a claro, a loucura de algumas correntes de pensamento modernas, presentes até mesmo no seio da Igreja, mas não falando por ela. 

A coisa que mais me chamou a atenção no livro todo, que é coroado de gemas e de refutações fantásticas de ideias modernas equivocadas, é aquilo que ele propriamente coloca como função do filósofo católico. Segundo ele, o filósofo católico deve se ocupar dos seguintes objetivos:


  1. Completar uma verdade incompleta, explicitando-a com maior perfeição, estabelecendo distinções ainda obscuras, descobrindo outros aspectos da mesma verdade ou refletindo acerca dela mais profundamente, estabelecendo elos entre esta verdade e outras verdades conhecidas. Isso se dá propriamente pela contemplação humilde da realidade que nos cerca, criada por Deus. Há uma tendência, segundo ele, advinda de uma compreensão popular da dialética Hegeliana, na qual se espera que sempre surja uma síntese superior entre um par de opostos, e isto leva a troca de uma verdade incompleta, porém ainda assim inegável, por uma mentira, pura e simplesmente. Um exemplo claro disso: o magistério da Igreja, em sua autoridade infinita, sempre explicitou muito o caráter procriativo do casamento, deixando a questão do amor conjugal como apenas um fim secundário, levando a uma certa displicência dos conjugues com relação a tal aspecto. A reação modernista é negar a necessidade do caráter procriativo, dizendo que o amor mútuo é o principal do matrimônio. Ora, isso é trocar uma verdade incompleta por uma mentira. O fim principal do matrimônio é a procriação, e não o amor mútuo. Entretanto, o amor mútuo é uma enorme fonte de santificação e de crescimento nas virtudes e na negação de si mesmo pelo bem do outro, em Deus. Deste modo, a atitude do filósofo católico deve ser, por exemplo (como o próprio Dietrich fez extensivamente em sua obra), explicitar mais profundamente o papel importantíssimo do amor mútuo no casamento, casamento este que não é figura da União de Cristo com a Igreja apenas pelo caráter procriativo, mas também pela união de amor indissolúvel (aqui neste mundo) que frutifica partindo das graças de estado dadas pelo Sacramento. Não há síntese superior entre erro e verdade incompleta: se é um verdade, então ela deve ser desenvolvida, jamais negada.
  2. Uma segunda função do filósofo católico é desvincular uma verdade, promulgada por algum filósofo, dos erros anexos a ela. Um exemplo clássico disso é a descoberta epistemológica de Platão no Ménon, que na filosofia dele, vem anexa à ideia falsa da preexistência da alma. Dietrich também cita a questão moral em Kant, que infelizmente vem anexada à infelicíssima ideia do imperativo categórico. A fenomenologia Husserliana também veio anexada, na exposição de Husserl, com erros idealistas, as quais foram expurgados por grandes filósofos como Xavier Zubiri. O fato de uma ideia estar anexada com erros não implica que esta ideia esteja errada, e expurgar o erro da verdade descoberta é função do filósofo em geral, particularmente do filósofo católico.
  3. Uma terceira função é a de dar argumentos mais fortes e convincentes para verdades conhecidas. Esse é justamente o papel também da teologia: expor argumentos racionais que corroboram para as verdades conhecidas de fé. No contexto da moral natural, isto também é muito importante. É uma coisa que Santo Tomás fez muito em sua Suma Teológica. No contexto moral, sua Secunda Secundae é um exemplo luminoso de tal atividade. Não que as explicações presentes lá não possam ser melhoradas, entretanto. Fazer isso é justamente função de um filósofo.
  4. Uma quarta função é desmascarar algum erro que impedia o progresso na compreensão da verdade. Isso em geral é feito por meio de distinções, como aquela entre o panenteísmo e o panteísmo e metafísica cristã. Isso é o tipo de coisa que pode passar despercebida, e ideias panenteístas (e suas consequências) podem se passar como consequência lógica fundamental de uma metafísica pretensamente cristã. Mostrar que tal metafísica é inconciliável com o cristanismo é, então, um objetivo nobilíssimo. 
Essas são as quatro funções de um filósofo católico, obviamente em fidelidade plena à Igreja na sua fé multimilenar, que na verdade é eterna, pois vem de Deus. Sou sim um físico, mas tenho um pé na filosofia. A filosofia é a mãe de todas as ciências, e um cientista excelente que tenha má filosofia é, no fim das contas, um aleijado intelectual, ainda que como cientista seja competentíssimo. O próprio lugar das ciências naturais no esquema geral do edifício humano de conhecimentos é um dado filosófico. É possível sim ser um excelente cientista sem estudar filosofia, mas jamais um sábio*.

* Não falo aqui da sabedoria típica dos santos, que muitas vezes é prática, é uma prudência infusa que a permite agir sempre bem, ainda que o encadeamento lógico-racional das ideias não seja o forte desta pessoa.

Dietrich Von Hildebrand



terça-feira, 3 de novembro de 2020

03/11 - Meditando sobre os pontos 247-250 de "Caminho", de São Josemaria Escrivá

 Seguindo o que sugeriu meu diretor espiritual, estou buscando fazer 20 minutos diários de oração mental, com um livro espiritual. No caso, o livro escolhido foi "Caminho", de São Josemaria Escrivá, fundador da Opus Dei.

 Hoje, depois de alguns dias parado em virtude do feriado prolongado e de alguns compromissos, voltei aqui pra USP para trabalhar. Trabalhar com física, com minha pesquisa. As vezes tudo parece árido, seco, abstrato e inútil, e não tenho "vontade" de trabalhar. Mas é bem claro que é isso que devo fazer. O dever de estado é tão grave para um leigo quanto é o dever de estado de um sacerdote. Trabalhar bem, sem distrações, é tão importante pra mim quanto é para um padre o atender confissões, o celebrar missa, o rezar o ofício divino com devoção. Mas sempre vem a pergunta: "qual o porquê de tudo isso?". Parece tão mais útil ficar estudando doutrina católica, ou filosofia! 

É verdade que estas coisas são importantes, mas um padre que deixasse de celebrar missa, rezar o ofício ou atender confissões estaria falhando gravemente, ainda que ele deixasse de fazer estas coisas para "estudar doutrina". Ele deve sim estudar doutrina, mas no momento oportuno, depois de cumprir todos os deveres. O estudo das coisas de Deus é excelso, o ordenar a mente em busca da verdade é bom, até uma pequena distração fazendo algo legal no momento oportuno, para fins de descanso, é ok, mas se estas coisas não estiverem associadas ao "carregar a cruz" no dever cotidiano... temos um problema.

Ok, vamos a São Josemaria:

247: Concretiza. - Que os teus propósitos não sejam fogos de artifício, que brilham um instante para deixarem, como realidade amarga, uma vareta de foguete, negra e inútil, que se joga fora com desprezo.

Ora, quantas vezes não fiz propósitos de vida apenas para ignora-los, cedendo a primeira tentação de dispersão? Cedendo à primeira, a vontade se estiola, e o dia de trabalho irá necessariamente de mau a pior, a não ser que haja uma ruptura violenta com a espiral de dispersão. De nada adianta um propósito sem cumpri-lo. Qual é meu propósito? Trabalhar bem, com afinco, com concentração, para aumentar minhas chances de conseguir ser um pesquisador de alto nível e obter uma posição universitária. Pra quê devo querer isso? Porque tudo indica que é isso que Deus quer de mim. Mas porque Deus quer isso de mim? Porque 1) tenho grande interesse e grande facilidade com física/matemática desde que me conheço por gente; 2) porque trabalhar bem naquilo que se está inserido é dever de todo cristão; 3) porque assumi este compromisso com meu orientador, com a universidade e com a FAPESp; 4) porque tenho dever grave de fazer o possível, sem negligenciar outros deveres, no que tange o proporcionar sustento para minha esposa e filhos (ainda mais porque a meta é que eu possa sustentar a casa sozinho, a fim de que a minha esposa possa se dedicar plenamente à importantíssima tarefa de educar verdadeiramente nossos pimpolhos); 5) porque sendo um professor universitário, seria um sujeito influente, podendo despertar algum interesse pelo catolicismo nos alunos; 6) porque sendo um bom pesquisador, levarei os alunos a pensar o seguinte: "ele é um grande físico e é católico: que curioso!; 7) porque o ambiente universitário precisa de católicos que se definam como tal e vivam como tal, porque lá impera o ateísmo e o materialismo. Se isso não é motivo suficiente, o que seria? Preciso que Cristo desça aqui em pessoa e me mande trabalhar?

248: És tão jovem! - Pareces um barco que empreende viagem. - Esse ligeiro desvio de agora, se não o corriges, fará que no fim não chegues ao porto.

Para que eu cumpra este propósito, preciso me vigiar todos os dias e trabalhar com afinco também diariamente. É assim na vida de oração, é assim no cuidado com o casamento, é assim no trabalho. Cada dia exige a guarda do coração, para que tudo eu possa fazer segundo uma "ratio" bem ordenada. Se eu deixo pra amanhã, pra semana que vem, pro mês que vem, o tempo se esgotará, e o fracasso baterá em minha porta. Claro, surgirão outras oportunidades, melhores ou piores, mas não é um bom hábito ficar jogando fora as oportunidades, né? E em algum momento as oportunidades se acabarão, e disso eu terei que prestar contas ao Bom Deus...


249: Faz poucos propósitos. - Faz propósitos concretos. - E cumpre-os com a ajuda de Deus.

Então, faço o propósito de trabalhar bem, com afinco, com concentração, fugindo das distrações, desintoxicando de tecnologia caso eu caia no pecado da dispersão, buscando em Deus o conforto e o consolo nos momentos de tristeza, que tantas vezes eu tentei afogar lendo notícias sobre questiúnculas eclesiais ou assistindo vídeos de queda-de-braço, atualmente meu esporte favorito...

250: Disseste-me e te ouvi em silêncio: “Sim, quero ser santo”. Se bem que esta afirmação, tão esfumada, tão geral, me pareça normalmente uma tolice.

"Cumprir o dever" não é suficiente para ser santo, mas é necessário. Que no cumprimento amoroso, paciente e escrupuloso de meu dever de estado, eu possa me santificar, carregando junto com Cristo a cruz para, crucificando-me com Ele, possa ser eu mais um a irradiar a luz de Sua ressurreição.