sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cavalo de Tróia na Cidade de Deus - Dietrich Von Hildebrand - As funções do filósofo

  Ontem terminei a leitura do livro "Cavalo de Tróia na Cidade de Deus", de Dietrich Von Hildebrand, um dos maiores intelectuais católicos do século XX, chamado de "doutor da Igreja do século XX" pelo papa Pio XII. Neste livro, ele busca desnudar, colocar a claro, a loucura de algumas correntes de pensamento modernas, presentes até mesmo no seio da Igreja, mas não falando por ela. 

A coisa que mais me chamou a atenção no livro todo, que é coroado de gemas e de refutações fantásticas de ideias modernas equivocadas, é aquilo que ele propriamente coloca como função do filósofo católico. Segundo ele, o filósofo católico deve se ocupar dos seguintes objetivos:


  1. Completar uma verdade incompleta, explicitando-a com maior perfeição, estabelecendo distinções ainda obscuras, descobrindo outros aspectos da mesma verdade ou refletindo acerca dela mais profundamente, estabelecendo elos entre esta verdade e outras verdades conhecidas. Isso se dá propriamente pela contemplação humilde da realidade que nos cerca, criada por Deus. Há uma tendência, segundo ele, advinda de uma compreensão popular da dialética Hegeliana, na qual se espera que sempre surja uma síntese superior entre um par de opostos, e isto leva a troca de uma verdade incompleta, porém ainda assim inegável, por uma mentira, pura e simplesmente. Um exemplo claro disso: o magistério da Igreja, em sua autoridade infinita, sempre explicitou muito o caráter procriativo do casamento, deixando a questão do amor conjugal como apenas um fim secundário, levando a uma certa displicência dos conjugues com relação a tal aspecto. A reação modernista é negar a necessidade do caráter procriativo, dizendo que o amor mútuo é o principal do matrimônio. Ora, isso é trocar uma verdade incompleta por uma mentira. O fim principal do matrimônio é a procriação, e não o amor mútuo. Entretanto, o amor mútuo é uma enorme fonte de santificação e de crescimento nas virtudes e na negação de si mesmo pelo bem do outro, em Deus. Deste modo, a atitude do filósofo católico deve ser, por exemplo (como o próprio Dietrich fez extensivamente em sua obra), explicitar mais profundamente o papel importantíssimo do amor mútuo no casamento, casamento este que não é figura da União de Cristo com a Igreja apenas pelo caráter procriativo, mas também pela união de amor indissolúvel (aqui neste mundo) que frutifica partindo das graças de estado dadas pelo Sacramento. Não há síntese superior entre erro e verdade incompleta: se é um verdade, então ela deve ser desenvolvida, jamais negada.
  2. Uma segunda função do filósofo católico é desvincular uma verdade, promulgada por algum filósofo, dos erros anexos a ela. Um exemplo clássico disso é a descoberta epistemológica de Platão no Ménon, que na filosofia dele, vem anexa à ideia falsa da preexistência da alma. Dietrich também cita a questão moral em Kant, que infelizmente vem anexada à infelicíssima ideia do imperativo categórico. A fenomenologia Husserliana também veio anexada, na exposição de Husserl, com erros idealistas, as quais foram expurgados por grandes filósofos como Xavier Zubiri. O fato de uma ideia estar anexada com erros não implica que esta ideia esteja errada, e expurgar o erro da verdade descoberta é função do filósofo em geral, particularmente do filósofo católico.
  3. Uma terceira função é a de dar argumentos mais fortes e convincentes para verdades conhecidas. Esse é justamente o papel também da teologia: expor argumentos racionais que corroboram para as verdades conhecidas de fé. No contexto da moral natural, isto também é muito importante. É uma coisa que Santo Tomás fez muito em sua Suma Teológica. No contexto moral, sua Secunda Secundae é um exemplo luminoso de tal atividade. Não que as explicações presentes lá não possam ser melhoradas, entretanto. Fazer isso é justamente função de um filósofo.
  4. Uma quarta função é desmascarar algum erro que impedia o progresso na compreensão da verdade. Isso em geral é feito por meio de distinções, como aquela entre o panenteísmo e o panteísmo e metafísica cristã. Isso é o tipo de coisa que pode passar despercebida, e ideias panenteístas (e suas consequências) podem se passar como consequência lógica fundamental de uma metafísica pretensamente cristã. Mostrar que tal metafísica é inconciliável com o cristanismo é, então, um objetivo nobilíssimo. 
Essas são as quatro funções de um filósofo católico, obviamente em fidelidade plena à Igreja na sua fé multimilenar, que na verdade é eterna, pois vem de Deus. Sou sim um físico, mas tenho um pé na filosofia. A filosofia é a mãe de todas as ciências, e um cientista excelente que tenha má filosofia é, no fim das contas, um aleijado intelectual, ainda que como cientista seja competentíssimo. O próprio lugar das ciências naturais no esquema geral do edifício humano de conhecimentos é um dado filosófico. É possível sim ser um excelente cientista sem estudar filosofia, mas jamais um sábio*.

* Não falo aqui da sabedoria típica dos santos, que muitas vezes é prática, é uma prudência infusa que a permite agir sempre bem, ainda que o encadeamento lógico-racional das ideias não seja o forte desta pessoa.

Dietrich Von Hildebrand



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